terça-feira, 26 de abril de 2022

Biblioteca - Por Betina Pilch

Hoje eu estava na biblioteca. Aquele espaço onde me encontrei pela primeira vez. Aquele espaço onde me senti perdida tantas vezes. Aquele universo que pariu tantos versos meus. Aqueles versos que uniram e rasgaram tantos universos em mim.

Ali, naqueles corredores, eu caminhei por muitas manhãs. Eu sorri e chorei em muitas tardes. 

Sentada naquelas cadeiras eu li Dostoiévski pela primeira vez. E deixei de me ler outras tantas.

Encontrei pessoas e me desencontrei de mim ao mesmo tempo que me encontrava todos os dias. E foi ali que redigi e li emails que apaguei para sempre da minha caixa de entrada, mas que nunca saíram daqui. 

Ali, naquela biblioteca, um dia eu sonhei em ser quem eu sou hoje e hoje sendo quem eu quis ser um dia, não tenho nenhuma certeza de quem eu realmente sou, mas já não sonho em ser outra coisa se não o que eu sou simplesmente.

Um dia, entrei ali menina. Uma noite, saí dali mulher. 

Uma biblioteca. Um casulo. Uma metamorfose. 

Uma metamorfose para além de Kafka. Nada a ver com insetos. Ainda que tantas vezes borboletas tenham voado dentro do meu estômago enquanto eu estava ali. 

Certa vez alguém chorou palavras de Valter Hugo Mãe e, ouvindo aquele choro, eu chorei também. 

Certa vez alguém mergulhou como Margarida e, vivenciando aquele mergulho, eu mergulhei também. E mergulhar em si às vezes significa se afogar e não sobreviver. 

Eu não sobrevivi.

Era final de tarde quando olhos verdes pararam naquela porta e me invadiram e eu quis me esconder. Me esconder para que os olhos marrons não vissem que eu tinha sido invadida. E por pouco aqueles olhares não se cruzaram.

Era noite quando as palavras nasceram e me acusaram de ser a responsável por elas, ainda que eu mesma não escrevesse uma palavra sequer há tanto tempo. Mas eu li tudo, mesmo não sabendo mais ler a mim mesma. 

Uma biblioteca. Uma história. A minha história. 

E eu contei tantas histórias ali. E acabei me contando em tantas delas. E eu senti medo de me lerem. Eu senti medo de ser eu.

Era meio dia quando acordei fora daquela biblioteca e precisei encarar minhas mortes pela primeira vez. E era nove horas da manhã quando renasci ali dentro de novo. 

Eu morri, renasci e vivi tantas vezes naquela biblioteca que me tornei um livro desconexo e nada linear vagando por aquelas estantes. E cada vez que entro ali me empresto para os outros, para finalmente me devolver a mim. 


- Betina Pilch.