sábado, 23 de julho de 2022

Caçadora - Por Betina Pilch



Depois do vermelho, havia o verde. Pontos de vista diferentes. O verde não enxergava o incêndio, nem sangue, nem dor. Tampouco chamas e medos. Apenas caminhos. Caminhos repletos de pássaros que passavam. Passáros que nem sempre eram animais. Pássaros que nem sempre saiam voar ou pousar.

E o verde olhava tudo, apreciava tudo. E, de repente, viu uma caçadora de poesia.

Quando era um ser masculino ele olhava e pensava: caçador, aquele que caçava dores. Mas quando viu aquela menina caçadora, percebeu que dor, de repente, terminava diferente, lembrava mais dourado do que dor. E ela caminhava, caminhava tanto e começou a perceber a sua força. Não para destruir ou causar medo, mas para enfrentar e apreciar cada feixe de luz, cada caminho aberto e, até mesmo, cada caminho fechado.

Ela passava por todos os cantos, por todos os ângulos, por todas as arestas, e se deparava com muitos poemas. Nem sempre traçados em versos, nem sempre estruturados em linhas e, na  maioria das vezes, nem rimas tinham. E se manifestavam  naquelas pernas fracas, que davam três passos e precisavam se sentar. Pernas que não eram dela, mas a inspiravam. Porque  quando se sentavam, não deixavam de caminhar, porque aquelas pernas estavam cansadas, mas a alma continuava disposta, disposta a continuar caminhando.

Às vezes, aquela alma observada alçava voos tão altos, que a caçadora acreditava que não podia alcançar de fato. Pensava que era preciso caminhar muito mais para um dia ter tanta força nas pernas, tanta força nas asas, como aquelas poesias com as quais ela se deparava em meio aquele verde que a cercava. Só os anos, só o tempo, só a experiência de toda uma vida, só as dores que um dia os caçadores tentaram caçar ali, fariam com que as pernas e as asas tivessem firmeza e persistência para continuarem caminhando e voando.

E a caçadora sorria, sorria com cada bom dia, com cada dia bom. Sorria porque, em meio a todo aquele verde, a vida era bonita, mais bonita do que o sol que brilhava, mais bonita do que as árvores que a olhavam, mais bonita do que a estrada que ela percorria.

A vida era feita de encontros. E esses encontros faziam a vida valer a pena, faziam as trilhas serem mais iluminadas, mesmo quando não havia sol nenhum. Mesmo quando o único sol só poderia raiar dentro dela mesma. Mesmo quando só havia o brilho da poesia que ela enxergava, da poesia que ela apreciava, da poesia que ela caçava.

E, mesmo cansada, mesmo ofegante, ela caminhava. Ela não desistia de caminhar, porque ela era caçadora. Buscava pelo dourado. Pelo lindo dourado. Um dourado que não se via, um dourado que não se caçava. Um dourado que apenas se sentia.

E ela sentia tanto, que começou a sorrir e não conseguia conter o riso. Assim, percebeu que o dourado estava ali: nos lábios, nos dentes, no sorrir. Um sorrir que não era mais só ir. Um sorrir em que ela finalmente encontrara o “R” que faltava. E ela entendeu que era isso que ela procurava. Caçadora: caçava o dourado. E o dourado era o “R” que faltava naquele imenso quebra-cabeça que era a vida. Era a pecinha que se encaixava e fazia tudo fazer sentido. E sentido era apenas a conjugação do verbo sentir.

E ela se sentou pela primeira vez, depois de tanto percorrer, igual aquelas pernas que ela havia apreciado no começo dos passos. Igual aquele caminhar que se sentava para deixar a alma voar. Ela finalmente se sentou - mas não cansada, e sim satisfeita por ter encontrado aquilo que precisava.

E, pela primeira vez, a caçadora voou e alcançou a si mesma.


terça-feira, 19 de julho de 2022

Era uma vez nem sempre tem finais felizes - Por Betina Pilch

 


Era uma vez uma floresta e um vermelho flamejante com potência para incendiá-la. Havia um vermelho que desejava ter essa potência, mas não enxergava isso em si mesmo.

E na floresta havia sol e noite. Luz e escuridão. Bastava apenas escolher o caminho para onde queria ir. O vermelho temeu a luz, mas não sabia por que. A origem do medo nunca era clara, apesar da chama que o vermelho carregava em si.

Naquele vermelho havia medos e coragens. Mas o medo camuflava tudo que pudesse destruí-lo - camuflava porque sabia que não tinha capacidade para exterminar o que ele temia.

O vermelho caminhava pela floresta. Preferiu a noite. Preferiu a escuridão. Lhe parecia mais atrativo, mais desafiador, mais misterioso. Na luz as coisas eram mais visíveis - o vermelho não quis enxergar. 

Fugia de enxergar até a si mesmo. Quebrava espelhos, destruía casas, devorava os perigos - exterminava com seu fogo tudo aquilo que pudesse lhe mostrar quem era, sem perceber que agindo assim, se deparava cada vez mais consigo mesmo. 

E o vermelho continuava caminhando, mesmo não enxergando nada. E havia lágrimas e sorrisos por toda aquela trilha, por todos aqueles caminhos, por todas aquelas árvores. Chorava de medo do que ia encontrar. E sorria pelo mesmo motivo. O desconhecido lhe instigava, mas também paralisava tudo. Era feito de contradições, de dicotomias. E quando nada se compreendia, sentia acalento. Explicar-se era exaustivo demais. Preferia as indagações sem respostas, afinal ouviu certa vez que problema sem solução, solucionado está. 

O vermelho ficou estático. Percebeu que tinha se perdido. Não queria reconhecer sua luz. Preferiu abraçar a cegueira do que iluminar o próprio caminho. Não sabia mais para onde caminhar. Só havia árvores e mais árvores, nenhum caminho onde pudesse pisar. E naquele momento desejou ter escolhido a luz. Não escolheu. Perdeu-se a si mesmo. E as lágrimas começaram a lhe apagar. Da potência para incendiar a floresta não sabia e, caso soubesse, não o faria com medo de se culpar. Era melhor salvar tudo do que a si mesmo - pensava. Era menos pesado apagar a si mesmo, do que flamejar e destruir tudo que lhe fazia se perder. Da sua potência para se salvar não sabia, mas a destruição da qual era capaz conhecia bem.

Chorou. Chorou muito. E naquele momento não sabia que, um dia, toda chama - se não tiver como se reacender - precisa conhecer a dor de se transformar em cinza. 

O vermelho foi se apagando. O que era flamejante agora era apenas fagulhas que não sabiam como se acender novamente - afinal, o vermelho nunca quis conhecer a si mesmo.

Ele escolheu a escuridão. Ele escolheu ser mera sombra de si mesmo. Ele não percebeu sua potência. E se apagou para sempre - sem chance de um dia se reconhecer. 

Era uma vez um vermelho que agora não é  mais.