sexta-feira, 27 de maio de 2022

O Barba Azul - Por Betina Pilch

Você está disposta a sentir a violência com que os homens amam?


Havia uma mulher que chorava. Chorava o luto de um marido perdido pra morte. Chorava e não se conformava por ele ter ido embora desse mundo. Chorava e orava, dizia estar num poço sem fundo. 


Havia outra mulher que ouviu o choro da viúva e lhe disse que a entendia. Três anos se passaram desde que seu marido falecera e ela ainda sofria com o vazio da solidão que ele deixara. 


Eu as ouvia e refletia sobre quão bons esses maridos foram para essas mulheres, ao ponto de elas não superarem o vazio de sua ausência. 


Minha história é muito triste, uma delas dizia. 

Se eu contar para vocês tudo que já vivi, vocês saem daqui chorando! 


A outra balançava a cabeça, assentindo. Pegava nas mãos daquela mulher e dizia: eu te entendo. Não queria entender, mas entendo. Minha história é sofrida também. 


E ali contavam suas angústias. 


A primeira vez que o marido levantou a voz.

O momento em que ele disse que ela só falava besteiras e a silenciou.

O primeiro insulto.

A voz que a chamava de chata, de feia.

O grito que a culpava pelas culpas que eram dele.

O sussurro manso que lhe dizia que ela não servia para nada.

O primeiro sumiço. O primeiro silêncio de tortura. A primeira falta de interesse, a indiferença.

A primeira traição. E a segunda. E a terceira.

A noite em que ela chegara cansada do trabalho e o marido desempregado a esperava sentado na sala para que ela fizesse o jantar. 

A tarde de domingo que ele espancou o filho.

A noite de quarta que ele ameaçou o genro.

O dia em que ele pegou um pé de cabra e ameaçou matá-la.


Mas ela e a outra sofriam. Sofriam pela perda desse homem. Desse homem que tanto lhes causou dor. 


Tudo é melhor do que a solidão, diziam. 

Até do barulho dos gritos eu sinto falta, falavam e riam. 

No final do dia, eu só queria ter morrido no lugar dele, afirmavam. 


E ali eu via a astúcia de um predador. O predador que devorou sua presa durante toda a vida e a deixou sem nada. Um esqueleto de si mesma. Ausência de vitalidade. 


Barba Azul - pensei. O Barba Azul que habita em todos os homens. 


Por que é que se ama quando não há motivos para amar, afinal? 

Porque só se conhece uma forma de amor: a violência com que os homens amam. E apega-se à única realidade conhecida. E não livram-se, porque em dado momento a donzela que foram sonhara com o amor. Mas ninguém lhe contara sobre a violência com que os homens amam. Não foram preparadas para lidar com a morte dos seus sonhos e idealizações. Não imaginavam que um príncipe podia ter barba azul e um porão de segredos sobre si. Um porão que guardava todas as mortes que ele causara em mulheres que acreditaram nele. 


Elas ouviram a história do Barba Azul. Ouviram, num primeiro momento, rindo, pois julgavam estar diante da infantilidade de um conto de fadas. E não eram mais crianças. Aquela história não faria sentido àquela altura da vida. 


“Só não abra o porão! Se abrir, conhecerá todas as consequências da minha cólera!” 

Diante da narrativa elas debochavam e riam durante a história. 


O porão foi aberto. Mulheres degoladas ali habitavam. 

E eu não sei mais se estou falando do conto de fadas ou da história que agora escrevo. 


Mas elas arregalaram os olhos. Assustadas com a violência. 


Uma interrompeu e disse:

Meu marido era o Barba Azul! 


E a outra:

O meu também! Meu Deus! Eu vivi tantos anos com o Barba Azul! O perigo que eu corri!


E os olhos se encheram de lágrimas. 

O príncipe nunca existira. O Barba Azul, sim. 


Eles predadores. Elas presas.


Por que é que eu sofro então? - uma se perguntava. 

Ele morreu, mas podia ter sido eu - a outra dizia.


No final das contas, elas morreram antes deles. Morreram a cada dia, diante de cada atitude. Quando eles se foram, elas já não se entendiam como gente viva. Não sabiam mais viver, tampouco amar. 

Porque um dia elas se dispuseram a conhecer a violência com que os homens amam e não houve uma pessoa sequer para lhes salvar. 


Agora o que lhes restava era encontrar a chave, sair do porão e sobreviver às cicatrizes de uma vida degolada, se dispondo a conhecer a resistência e persistência com que as mulheres vivem. 

3 comentários:

Anônimo disse...

Que texto intenso, lindo e necessário ❤️

Anônimo disse...

Quantas mulheres eu conheço que receberam esse amor do Barba Azul. É de muita profundidade!

Dany Campos disse...

Esqueci de me identificar