terça-feira, 7 de junho de 2022

Esquinas vermelhas - Por Betina Pilch


Um sapato arrebentado na esquina. Mas não qualquer sapato: um sapato vermelho. Mas não um par de sapatos, apenas um sapato vermelho arrebentado na esquina.

Quando o vi, me perguntei de quem era. Mas não apenas de quem era, mas a qual mulher pertencia. E por que um sapato de salto vermelho tão bonito estava arrebentado. Não apenas arrebentado, mas arrebentado e abandonado em uma esquina. 


Uma mulher passava por ali olhando para o chão daquela rua esburacada. Mas não qualquer mulher: a mulher dona do sapato de salto vermelho arrebentado. Mancava com um pé calçado e o outro descalço. Mancava desconfortável, mas alheia ao desconforto. Olhava para os buracos da rua, não levantava a cabeça. Olhava para o chão, mas não para os próprios pés. 

Ela passou por mim. Ela passou pelo sapato. Ela não enxergou nada além da rua e seus buracos. 

Abaixei-me. Peguei o sapato de salto vermelho arrebentado. Olhei para a mulher. Chamei-a - ela não me ouviu. 

Continuou caminhando, mancando, olhando para o chão. Ela andava como quem esquece que manca. Andava como se nunca tivesse perdido um de seus sapatos. Andava como se o desconforto fosse familiar. Andava como se estivesse acostumada à falta, à ausência.

Corri. Parei em sua frente. Parei segurando o sapato vermelho que ela perdera. Ela desviou e, ainda assim, não me olhou. 

Corri novamente. Parei em sua frente. Parei segurando o sapato vermelho que ela perdera. Coloquei o sapato diante do seu pé descalço. Ela passou por cima. Não o enxergou. 


Sentei naquela esquina com o sapato vermelho diante de mim. Inquieta me questionava por que a mulher rejeitara o sapato. Por que a mulher não desejara calçá-lo no pé descalço. Fui além: questionei por que aquela mulher continuava com um dos sapatos nos pés e o outro descalço, mancando por ruas esburacadas, olhando para o chão sem levantar a cabeça. 


“Estou olhando para baixo, olhando para o caminho que estou trilhando, é preciso cuidado para não tropeçar e cair. Eu preciso continuar, apenas isso. Eu preciso dar atenção à estrada. Eu preciso chegar a algum lugar, não posso desviar o olhar, caso eu me distraia, eu me perco” - ela disse, de repente, para si mesma. 

Fiquei encarando seu caminhar manco. Eu não compreendia. Mas ela não parecia precisar de compreensão alguma. Ela só precisava caminhar. Chegar a algum lugar. 


“Mas aonde quer chegar?” - perguntei.

“A algum lugar” - respondeu.

“Mas a qual lugar?” - questionei.

“Não sei. Apenas me disseram que eu precisava chegar a algum lugar” - confessou.


Disseram… Eles nos dizem tantas coisas… 

Mas quem será que dissera àquela mulher que ela precisava chegar a algum lugar? Que poder teria alguém para dizer isso e ela ouvir ao ponto de achar que era só isso que precisava? Ela disse que precisava… Precisava por quê?


Caminhei ao seu lado, em silêncio. Eu queria apenas compreender aquele caminhar. Aquele pé descalço que a fazia mancar. Mas eu não compreendia. Ainda assim, caminhei ao seu lado por algumas esquinas. Não a compreendia. Mas não queria deixá-la sozinha com aquela necessidade que era só dela, mas que nem ela questionava o porquê.


“O que você quer? O que, realmente, deseja?” - perguntei, interrompendo aquele silêncio repleto de incompreensão. 

“Desejo? O que eu desejo?” - perguntou.

“Sim! Você disse que precisa chegar a algum lugar. Mas você quer chegar a esse lugar?”

“Eu apenas preciso. Apenas me disseram que eu precisava. Mas eu estou tão cansada. Talvez… talvez eu queira parar. Sentar. Olhar pra cima. Não ter medo de cair…”


Não respondi. Ouvi e acolhi aquele singelo desejo. Sentei. Olhei para cima. E pela primeira vez ela desviou os olhos do chão e me olhou. Ela sorriu e sentou ao meu lado. Olhou para cima. E sorriu novamente.


“Seu sapato… pegue!” - falei entregando-lhe aquele sapato vermelho arrebentado que um dia eu encontrara na esquina. 

Ela me encarou com o olhar repleto de incompreensão. 


“Não é meu sapato. Veja… este é menor que meu pé. Não me serve. Na verdade, meus pés são grandes demais, apenas uma única vez encontrei um sapato que me cabia, mas seria pedir demais encontrar o par né?” E gargalhou, rindo de si mesma.

“Talvez seja seu” - disse ela apontando para os meus pés. 


Com estranheza olhei para baixo pela primeira vez e encarei meus próprios pés: um pé calçado e um pé descalço. 

Incrédula, analisei o sapato vermelho arrebentado e vesti: serviu. Era mesmo meu. Espantada eu me questionava quando havia perdido e por que eu não lembrava que me pertencia. Como pudera perceber a falta do outro e estar tão alheia à minha própria falta?

Como pudera preocupar-me tanto com o caminhar do outro e não sentir o meu próprio caminhar?


Meu sapato vermelho… Meu pé descalço… Meu caminhar manco… 


“E você? O que quer? O que deseja?” - A mulher manca me perguntou. 


E, olhando para os meus pés calçados, olhando para o meu sapato vermelho arrebentado, silenciei. 

Pela primeira vez eu entendera a necessidade de encarar os meus próprios desejos. 


5 comentários:

Anônimo disse...

Sensacional! Amei❤️

Anônimo disse...

Mito bom.😜

Anônimo disse...

Genial!

Anônimo disse...

Betina, o quão difícil é, muitas vezes, olhar para si e encarar seus próprios desejos. Incrível!

Anônimo disse...

Dany Campos