quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Noite solar - Por Betina Pilch

 


Um livro aberto na memória do ser. 

Livro este que um dia fora fechado e enterrado num bosque de esperanças mortas. Esperanças que outrora verdejaram na paisagem que aqueles olhos, vestidos com lentes de poesia, tanto vislumbraram.

Olhos que liam a alma dos sonhos e escreviam na terra molhada capítulos que ainda sonhava viver.

Terra que carregava páginas de um corpo caído, prostrado e ferido, que numa noite ensolarada, cansara de escrever.

Uma mulher cansada que rasgou todas as páginas que escrevera - não enxergava mais beleza no livro que um dia ousara fantasiar.

Uma mulher. Um livro. Um bosque. Uma vida com tantas mortes causada pelos recortes de mãos que um dia ela se dispôs a afiar. 

Naquele bosque, numa noite de lua cheia, jurou que podia ouvir a sinfonia desafinada dos cortes que um dia sofrera. E do sangue fez tinta. E desenterrou o livro em tantas partes rasgado. E pintou cada folha sorrindo como criança que sorri diante de um livro de colorir. 

Um livro aberto na memória do ser. Livro escrito na terra molhada por um céu que chora ao ser queimado pelas chamas que iluminam a noite. Uma noite solar. Uma noite solar que sola as sinfonias das páginas rasgadas que, agora pintadas, emitem novos sons. Melodias pintadas. Páginas cifradas.

Páginas cifradas um dia tocadas por quem foi capaz de ser tocado por cada nota entoada. 

Uma canção cantada na memória do ser.

Canção essa que um dia fora silenciada e esquecida num quarto de inércias desordenadas. Inércia que outrora confortara aquele, cujos olhos, vestidos de crenças, estavam cansados, mas não deixaram um segundo sequer de acreditar. Olhos que ouviam cada esperança enterrada, apesar da canção silenciada, esquecida no quarto ao lado. Quarto que guardava toda a bagunça que ele carregava dentro de si. Bagunça que ele nunca desistiu de arrumar. 

Um homem que compôs histórias melódicas regadas pelas próprias lágrimas que humanizavam aquela alma por tanto tempo torturada que por sentir demais, não sabia como sentir. 

Um homem. Uma canção. Um quarto. Uma vida de tanta espera e busca pelo infinito de si mesmo. Infinito que lhe esperava bem ali, naquele bosque. 

Um bosque. Um homem. Uma mulher. 

Um livro aberto e uma canção cantada na memória do ser. 

Seres que finalmente eram. Eram dois em um numa noite de sol pintada com estrelas e notas musicais. 

Finalmente viviam uma história contada, uma canção entoada, que nunca imaginaram ler ou escutar. 

Eram vida - vivendo a possibilidade de ser. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Betina Betina Betina…
Vc tem uma sensibilidade capaz de canalizar e dar forma a silêncios que são intangíveis a muita gente, você é um veículo rico com uma profundidade de significado sem limites, seu habitat natural é a escrita e isso só comprova que o universo que vc encontra nas palavras dá tempo, espaço, e te faz parar antes de cada letra, e nessas entrelinhas, vc se preenche.

E você não só faz isso com paixão, como vc inspira as pessoas a mergulharem nelas, a resinificarem o que sentem, a aprenderem a narrar a vida delas de um jeito mais humano, mais profundo, vc estimula, instiga, provoca, pra que as pessoas conseguirem ter a SUA confiança pra pular as cercas que te prendem numa mente ordinária. Vc quer que elas tomem consciência e confiança pra se expressarem, pq sua vulnerabilidade, me dói de tão intensa.

Vc é a mulher nua que qualquer pintor gostaria de pintar. Vc é como Calíope, uma musa em carne e osso. Sim, vc é formidável em tudo, mas na escrita, vc chega perto de uma apoteose. Uma catarse.

Vc é um santuário a ser preservado!